Editorial Educação Cívica, Liberdade e Humanidade
Por Jorge Olímpio Bento (Autor).
Em Revista Portuguesa de Ciências do Desporto v. 5, n 3, 2005.
Resumo
consensual a afirmação da necessidade de reinventar tanto a esfera pública (a do Estado em particular e a da sociedade em geral) como a privada (esta a cargo da consciência e da actuação de cada um de nós). São muitos os pretextos para esta formulação e são igualmente diversas as formas e perspectivas de abordagem do assunto. Por isso as reflexões, que se seguem, não reivindicam exclusividade e abrangência; querem ser apenas um contributo. 1. Da educação cívica O enorme descrédito que atinge hoje o regime democrático impõe que se erija em questão central a educação cívica, entendida esta no sentido de preparação para a cidadania, para (con)viver de maneira política, social e moralmente responsável. Em primeiro lugar ela deverá prevenir a crescente e letal influência exercida pela ignorância e pelo populismo, cujo predomínio constitui o mais grave problema da democracia. Por isso a educação cívica assume-se como uma competência para a comunicação argumentada. Para pôr cobro à incapacidade para expressar exigências ou para compreender as que são formuladas pelos outros, para argumentar a favor das posições próprias e para refutar os argumentos e ardis alheios, para ultrapassar a carência de compreensão dos direitos e deveres impostos pela vida em sociedade e para contrariar a acção retrógrada e patológica de tribos, lobies e corporações de interesses ilegítimos. São os cidadãos ignorantes, todos com direito a opinião e a voto, quem sustenta os populistas e demagogos que prometem o paraíso e o bacalhau a pataco e arranjam bodes expiatórios para todas as crises e frustrações. Em segundo lugar a educação cívica leva em conta a máxima de Aristóteles, de que “ninguém pode chegar a governar sem ter sido antes governado”. Isto é, todos temos que adquirir o sentido da equidade e responsabilidade, aprender a obedecer a leis e a praticar os valores partilhados. Até porque a trave mestra da democracia consiste em que nela não haja especialistas em mandar e especialistas em obedecer, mas sim em que todos os cidadãos sejam aptos para desempenhar os dois papéis. Por isso será cívica a educação que optimize os cidadãos, que os forme como príncipes inter pares, inculcando neles tanto a condição de mando como a de obediência, tanto a de objecto das leis como a de sujeito delas. Sendo os meios que justificam os fins, a democracia só tem justificação se for servida por este tipo de cidadãos. Para tanto a educação cívica deve cuidar de contribuir para a realização do direito fundamental de qualquer pessoa, qual seja o de ser dotada dos meios intelectuais necessários ao exercício da deliberação, isto é, da liberdade. Ora isto assenta na formação de caracteres humanos capazes de persuadir e de se abrir à persuasão, de perceber e apreciar a força das razões e recusar a razão da força, de participar em projectos e celebrar acordos e transacções, de ser racional e razoável a reconhecer o mesmo estatuto aos outros. Trata-se, enfim, de formar um cidadão habilitado a confirmar aquilo que ontologicamente é: um ser de pensamento, de palavra, comunicação e acção. Isto inclui a educação para a tolerância. Não para aceitar e valorar tudo por igual, mas para respeitar os caminhos plurais que segue o humano, balizados pelo marco da declaração dos direitos humanos. Está, pois, posta de lado a tolerância perante aquilo que sabota a cultura humanista e democrática ou perante todas as opiniões e posições. O direito à diferença não pode ser convertido em dever para os outros, ou seja, não é curial impor-lhes como norma desvios tolerados mas não justificados. Nem o fanatismo nem o relativismo podem merecer uma atitude convivencial. O primeiro porque tem subjacente a rejeição do diferente, com medo de ser contagiado e desmentido por ele. (Nietzsche definiu-o, de modo luminoso e certeiro, como sendo a única força de vontade de que são capazes os fracos). O segundo porque se esfalfa a tentar justificar o postulado falso, logo injustificável, de que todas as culturas merecem igual apreço. É certo que se pode aprender alguma coisa com cada uma, mas não são todas igualmente compatíveis com os valores, princípios e direitos humanos e universais. De resto, o alvo central da educação é precisamente o de capacitar os cidadãos a valorar e classificar, a preferir e optar, a escolher e excluir o que exalta ou amesquinha a nossa humanidade. 2. Liberdade e humanidade “Estamos condenados à liberdade”, sentenciou Sartre, o que nos obriga a uma constante interrogação sobre o uso que fazemos dela, porque não somos livres de ser livres. Nós e os outros, eu e tu. Com efeito o que nos define como humanos não são os instintos ou o património genético; é sim, diz Fernando Savater (in: A coragem de escolher), “a nossa capacidade de decidir e inventar acções que transformem a realidade (...) e a nós mesmos. Essa disposição, chamada ‘liberdade’, é a nossa condenação e também o fundamento do que consideramos a nossa dignidade racional”. Por outras palavras, a liberdade – isto é, a possibilidade, competência e coragem de escolher entre o bom e o mau, o melhor e o pior, o belo e o medonho, a verdade e o erro, a humanidade e a inumanidade, a recta razão e a falta dela, a justiça e a iniquidade, a honra e a desonra, o prazer e o sofrimento, a democracia e a tirania, a cidadania e a fuga aos deveres cívicos – atravessa a nossa existência, porquanto o problema da escolha é o grande problema da vida inteira. Pelo facto de nascermos humanos estamos determinados pela tarefa interminável de ter que escolher constantemente os meios juntamente com os fins. Sabendo – avisa Erich Fromm – que “não devemos confiar em que alguém nos salve, mas conhecer bem o facto de que as escolhas erradas nos tornam incapazes de nos salvarmos”. “Escolher hoje a humanidade – diz Fernando Savater – é optar por um projecto de autolimitação no que se refere ao que podemos fazer, de simpatia solidária perante o sofrimento dos semelhantes e de respeito perante a dimensão não manejável que o humano deve conservar para o humano”. Juntemo-nos a Savater e façamos nossa a sua proclamação: “Que o humano reconheça o humano, em parte por natureza e em parte por fraternidade simbólica (…), que o humano procure a humanidade sob a pluralidade das suas manifestações, que os homens cresçam e vivam entre humanos, sempre valiosos uns para os outros…” Assumamos a nossa quota-parte neste empreendimento! Com esse fim renovemos o compromisso com o humano e contribuamos para que o desporto seja cada vez mais um produto da inteligência e do labor cognitivo, científico e racional e, por consequência, uma das obras-primas que celebram a liberdade humana!