Integra
Para chamar a atenção dos meus alunos nas aulas de formação de professores, costumava argumentar que se um médico esquece um instrumento no paciente, numa cirurgia, provocando infecção, ou se um engenheiro constrói uma ponte e ela cai com veículos, por erro de cálculo, esses profissionais são processados criminalmente. Dizia que era difícil a condenação pelo lobby das máfias profissionais, mas a dor de cabeça era grande. Agora, quantos crimes cometemos no processo educativo, matando talentos, iniciativas que resultariam em coisas boas para as pessoas envolvidas e para a sociedade, e nem sequer somos denunciados? Hoje ocorrem denúncias, muitas vezes infundadas, sobre o comportamento docente, por preconceitos, abordagens sexuais etc., as vezes sem nem dar oportunidade do contraditório. Afora isso, nem sequer somos denunciados nos pequenos crimes que cometemos em nome do bem-educar, como detentores de micropoderes, que aos olhos dos alunos, principalmente das crianças, parecem gigantes.
Isso me ocorreu vejam bem, visitando uma exposição de artes plásticas, num centro cultural de minha cidade. Na verdade, era uma exposição das obras que geraram as ilustrações de um livro infantil. Havia um burburinho no centro cultural provocado por uma visita escolar de crianças de faixa etária do primeiro grau. Confesso que gosto quando crianças visitam exposições, embora não goste da movimentação e do barulho que fazem, exatamente por falta de educação de como se comportarem.
Só que muitas vezes a preparação anterior, que deveria ocorrer, falando dos limites de compartilhar a arte em locais públicos, é substituída por ameaças e por encaminhamentos errôneos em termos educativos, quando da realização da programação.
Notei um menino franzino fascinado por um quadro pintado em tons de azul. Não sei bem o que significava seu olhar, admiração, medo, alegria, ou uma mistura disso tudo, mas o fato é que o magnetismo da obra sobre o apreciador não podia ser questionado.
De repente, uma voz feminina estridente, chamou a atenção e dirigiu-se ao garoto dizendo “Acabou seu tempo, fulano, você já teve tempo para ver tudo. Vamos à próxima sala, todos”. E os estudantes fizeram uma fila indiana e se locomoveram tal como a professora havia ordenado. O garoto franzino deixou, visivelmente a contragosto, o quadro azul e entrou na fila cabisbaixo.
E eu fiquei pensando que significado aquilo teria na educação artística daquela criança.
Outra vez, há algum tempo, já havia presenciado outro arroubo de uma arte educadora visitando a Casa da Tulha, no Parque Ecológico da cidade. Ela perguntava as crianças se elas haviam observado bem as obras expostas, porque depois teriam que fazer uma redação sobre elas, com nota valendo para a avaliação do semestre letivo.
E não pude deixar de lembrar também do meu início como animador sociocultural do SESC-SP, onde as recreações infantis, sob a desculpa da educação para o lazer, e de apresentar atividades diferenciadas a fim de que a escolha pudesse ser em um leque maior, dispunham as crianças a vivenciarem atividades consideradas “calmas”, entremeadas com atividades tidas como “ativas”. Dava-se um tempo para que elas ficassem em cada uma das estações, ao fim do qual elas seriam movidas para outras. E uma cena que ficou na minha memória foi a de um garotinho que queria terminar sua pequena obra na oficina de argila, e foi levado chorando e aos gritos para a atividade cabo de guerra. Compreendi a revolta da criança, pois ela estava se dedicando por inteiro, à sua maneira, moldando o barro de acordo com sua fantasia, e se viu frustrada na sua criatividade. É claro que depois a organização mudou sua estratégia de recreação, mas, naquela época, era assim.
Espero que minhas observações de educação artística in loco, sejam fruto de um interesse grande pelo tema, que me faz ficar com a mente e a sensibilidade aguçadas para esses “deslizes”, e que eles não ocorram de fato com tanta frequência, mas minhas constatações levam a reflexão que dividia com meus alunos de formação de professores. Quantos crimes cometemos em nome da boa educação? Como exercemos nossa autoridade e não o autoritarismo que carregamos conosco inerente à profissão? O que é boa educação em se tratando de arte-educação? Como incentivar a expressão artística? Estamos contribuindo para a formação de um público apreciador das artes, de cidadãos mais críticos, criativos e expressivos, ou submissos conformistas?